Palestra realizada no XIII Simpósio Internacional da Associação Junguiana do Brasil realizado em Canela-RS (Nov/2005).
Súmula:
Há mais de dois mil anos atrás surge um texto que elabora a nível bastante profundo noções da estrutura da mente, do inconsciente, as causas do sofrimento humano e os meios de trilhar o caminho de saída. Mais interessante ainda, seu autor proclama que ele não é o criador do que ali está estabelecido, mas que esse conhecimento já vem sendo transmitido há muitos e muitos séculos. Esse autor, considerado também um grande mestre na área da medicina e da gramática, é Patañjali, o primeiro professor que sistematizou o conhecimento do Yoga através da mais completa e perfeita escritura do Yoga que já existiu, o Yogasūtra. O objetivo dessa apresentação é desenvolver a visão psicológica e espiritual dessa escritura e estabelecer um vínculo entre esse
conhecimento tão antigo e abrangente com os sistemas de cura da atualidade.
Palestra
Abertura:
O Prof. Wolfgang Giegerich, ao abrir sua palestra no sábado à noite, se referiu à vela que estava colocada junto à mesa dos palestrantes e fez uma interessante colocação ao dizer porque havia solicitado a retirada dela. Disse que não gostaria que a luz ficasse fora, e sim dentro das palavras que ele estava por proferir. Ao dizer isso ele trouxe um conceito essencial dentro do ensinamento do yoga do qual trataremos aqui.
O yoga é um sistema de conhecimento que tem origem na Índia e que se espalhou pelo mundo inteiro, tendo influenciado muitos filósofos (como Schopenhauer e Nietzche, por exemplo) e outros pensadores ao longo dos últimos séculos.
Sua origem é muito antiga, provavelmente mais de 4 mil anos. Seu texto central, considerado recente devido ao yoga ter se mantido por muito tempo como uma tradição exclusivamente oral, foi escrito há cerca de dois mil anos por um grande sábio chamado Patañjali. É neste texto, que continua sendo estudado incansavelmente por estudiosos de diversas áreas até os dias de hoje, que encontramos ensinamentos sobre a percepção humana, sobre o sofrimento, suas causas e como reduzi-lo.
Há pouco mais de um século começaram as primeiras traduções ocidentais de textos em sânscrito, língua na qual a maior parte dos ensinamentos do yoga foram escritos, e, conseqüentemente, os primeiros contatos mais sérios com a civilização ocidental. Mas é ainda muito mais recente a concordância dos professores tradicionais em ensinar ocidentais de forma continuada e profunda. É por isso que o yoga tem pela frente um longo caminho de amadurecimento no ocidente, há ainda muitas confusões e enganos.
Com o objetivo de estruturar melhor esta análise, dividirei aqui o conteúdo em três tópicos principais:
1- O alicerce teórico do yoga enquanto sistema de cura;
2- A mente enquanto instrumento de relacionamento;
3- A fonte da percepção: o eixo do ser humano.
1-O ALICERCE TEÓRICO DO YOGA ENQUANTO SISTEMA DE CURA
Yoga é um conhecimento que trata da mente, tendo como propósito reduzir as causas do sofrimento humano. A mente é vista como a fonte desse sofrimento e, ao mesmo tempo, como a responsável por achar o caminho de saída. E por quê? Porque é através dela que nos relacionamos com o que está ao nosso redor, é através dela que compreendemos algo ou nos enganamos, é nela que surge o desejo incontrolável por alguma coisa e a raiva de outra. E é por isso, pelo que acontece nela, que sofremos ou nos alegramos. Quando eu uso a palavra mente aqui, creio que a forma mais segura de traduzi-la para a realidade deste simpósio é como “psique”. A palavra mente, ou “citta”, no vocabulário do yoga, inclui todos os processos emocionais, nossas memórias, marcas, identidades, medos, imaginações, compreensões e enganos. E essa mente é muito poderosa, não podemos ser simplistas quando temos por objetivo realizar alguma mudança no campo emocional. Por isso consideramos que o primeiro passo para preparar o terreno para uma mente sadia é ter algum grau de tranqüilidade física, algum nível de bem-estar e saúde física. Além do corpo físico, também a nossa vitalidade afeta a estabilidade emocional. Quando estamos nos recuperando de uma doença – e ainda não voltamos plenamente à nossa vitalidade habitual – podemos perceber que nosso estado mental também se modifica. O que eu quero enfatizar aqui é a importância de haver um grau mínimo de saúde física e vitalidade para que possamos mergulhar em uma reflexão imparcial a respeito dos fatos, a respeito de nós mesmos e do que nos cerca. Há uma relação muito mais íntima do que normalmente imaginamos entre os vários níveis que compõem a pessoa humana. Quanto mais tivermos experienciado um certo grau de saúde em outras esferas (dimensões física e respiratória, por exemplo), mais naturalmente isso será possível a nível emocional. Infelizmente, hoje em dia, isso tem sido muito desconsiderado em várias abordagens terapêuticas. É muito provável, inclusive, que o simples resgate dessa vitalidade – desta experiência de saúde (mesmo que ainda a um nível primário) – enfraqueça certos conflitos ou dificuldades mais superficiais que andavam nos rondando. Ou, pelo menos, abrirá caminho para enfrentarmos desafios com mais energia e bem-estar. Este é o alicerce do yoga, a interação entre os vários níveis do ser humano.
Yogasūtra II.28 “yoga aṅga anuṣṭhānāt aśuddhi kṣaye jñana dīptiḥ āviveka khyāteḥ”
“Os esforços para trazer saúde e estabilidade ao corpo, à respiração e à mente devem ser seguidos firmemente (anuṣṭha). Isso reduz (kṣaye) os obstáculos (impurezas=aśuddhi) para que a luz do conhecimento possa brilhar (jñāna-dīptiḥ=luz do conhecimento) e possamos vivenciar uma grande discriminação (ā-viveka=discriminação ilimitada) correta a respeito de nós e do que nos cerca.”
2- A MENTE ENQUANTO INSTRUMENTO DE RELACIONAMENTO
Uma vez tendo compreendido a relevância de levarmos em consideração essas várias esferas no processo de cura, eu gostaria de esclarecer um ponto muito importante com relação à visão de mente no yoga. A natureza da mente é ser inconstante, num momento eu estou triste por alguém ter roubado o CD player do meu carro, no outro estou feliz porque aproveitei para colocar um MP3 no lugar dele. A mudança de estados mentais é uma experiência que temos diariamente, e, na maioria das vezes, as mudanças se dão independentemente da nossa vontade. Didaticamente, podemos enumerar cinco estados mentais nos quais a mente opera: no primeiro e no segundo estado, que são os mais doentios, não há chance para qualquer tipo de compreensão. No primeiro estado a agitação é tão grande que não nos abandona por um segundo sequer, no segundo estado o torpor é tal que a sonolência e inércia impedem que qualquer outra atividade mental ocorra. O terceiro estado mental é aquele em que estamos mais habituados a viver, oscilamos entre momentos de torpor, agitação e concentração. O quarto estado é aquele no qual conseguimos nos concentrar habilmente em algo, é o primeiro passo para conseguirmos ter a compreensão a respeito de um objeto. E o quinto estado, finalmente, é o onde conseguimos nos envolver com esse foco sem nenhuma perturbação e tirar dali um grande aprendizado. Reconhecendo esses vários estados como sendo uma enumeração das várias possibilidades e do potencial da mente, podemos concluir que temos uma chance de sair de uma situação de sofrimento, basta termos a sabedoria e a atitude necessárias para colocarmos essa mutabilidade a nosso favor. Ao perceber que certos fatores nos conduzem mais facilmente ao sofrimento e outros nos conduzem ao contentamento, temos a possibilidade de fazer escolhas mais positivas. Digamos que essa possa ser vista como uma segunda etapa, uma etapa onde estamos desenvolvendo um auto-conhecimento que nos permite escolher o que é mais apropriado para colaborar com nossa saúde emocional (a primeira etapa foi reduzir qualquer desconforto físico ou doença e desenvolver vitalidade). Mas, mesmo assim, essa segunda etapa ainda pode ser considerada uma etapa emergencial, ainda estamos no pronto-socorro. Aqui ainda estamos nos protegendo daquilo que nos perturba, ou seja, encontramos a fonte mais aparente do nosso problema, mas não o resolvemos, apenas nos afastamos dessa fonte, assim como nos afastamos do sol quando estamos com muito calor, nos abrigamos no primeiro local onde haja sombra, ou onde haja um ar-condicionado. Uma vez que estejamos razoavelmente protegidos, não mais estamos totalmente tomados por perturbação, estamos mais preparados para a terceira etapa. A segunda etapa é essencial, é muito importante, mas podemos andar mais.
3-A FONTE DA PERCEPÇÃO: O EIXO DO SER HUMANO
No Yoga consideramos que existe um nível mais profundo, mais central no ser humano. Um nível mais profundo que a mente. TKV Desikachar, no livro “What are we Seeking”, usa uma metáfora onde relaciona este eixo do ser humano com o eixo de uma roda. Imagine uma roda presa a um eixo central (como a roda de uma bicicleta ou de uma carruagem). Quando giramos a roda e olhamos para a parte mais externa, vemos muito movimento. Mas quando posicionamos nossos olhos no eixo central, não existe movimento nenhum ali. Aliás, se o eixo não estiver totalmente estável a roda não irá girar com tanta habilidade. Pois nós também temos esse eixo, e esse eixo é considerado a fonte da nossa percepção. Ele que nos dá a capacidade de sermos conscientes de algo, de percebermos algo. A mente, neste sistema, é apenas um instrumento. Sendo um instrumento, ela pode ser útil, se for refinada e se tiver as qualidades necessárias para realizar nosso objetivo, ou pode ser um obstáculo, se for um instrumento frágil e mal acabado. Assim como um microscópio limpo, com lentes de boa qualidade, permite que eu faça descobertas sobre a estrutura de uma célula, enquanto que um microscópio mal cuidado, que acumulou fungo numa das lentes, não permite que eu investigue com precisão meu objeto de estudo. A mente torna-se, assim, um instrumento a ser cuidado, fortalecido, refinado. Ela é o instrumento, não é o chefe, ela é o meio, a nossa ferramenta. Lembremo-nos que há algo mais profundo. Uma vez que o instrumento seja apropriadamente fortalecido e refinado, ele se torna um bom condutor dessa percepção, dessa consciência, desse eixo central. Considera-se que, assim como a conseqüência natural do alívio de uma perturbação física é um bem-estar mental ou assim como a conseqüência natural da cura de uma doença é o retorno da nossa vitalidade, também a conseqüência natural de uma mente saudável – forte e refinada – é o contato com esse eixo, essa fonte. Como essa fonte é responsável pela nossa percepção, nossa consciência, uma vez que entramos em contato com ela passamos a ter uma maior clareza em nossas reflexões e, portanto, em nossos atos. Essa fonte, diferente da mente, tem por natureza a constância, a clareza. Pois ela não é um instrumento, ela é a base. O que consideramos cura no yoga é a manifestação dessa clareza. Só a clareza pode reduzir o sofrimento. E a clareza só é possível se passarmos por todas as etapas. Pressa é sinônimo de fracasso em yoga. Eu posso até sentir urgência em me livrar do sofrimento, mas essa urgência precisa ser transformada em ações apropriadas, para que possamos seguir etapa por etapa e assim produzir as transformações possíveis em cada momento da vida.
Finalização:
Uma das questões que naturalmente pode surgir neste momento é: O que é esta fonte da percepção? E aqui nós entramos, talvez, num dos temas centrais do seminário que assistimos ao longo deste fim-de-semana: seria este eixo algo espiritual? Seria algo ligado a alguma tradição religiosa específica? O que é isso que consideramos “o mais profundo”?
Para o yoga não interessa o nome, não é algo vinculado a nenhuma tradição religiosa específica. O que importa aqui é que esta realidade existe em nós, é um nível do ser humano que, assim como as outras esferas na nossa existência, não pode ser negado. Quando recorremos, em yoga, a alguma noção religiosa, adotamos aquilo que é a verdade de cada praticante. Talvez, para uma determinada pessoa, Jesus Cristo transmita as qualidades de clareza, sabedoria, luz. Para outra pessoa, quem sabe Buda corporifique essas qualidades. Outra, nem sequer dê um nome a isso, considere que exista uma força universal mais elevada. Se consideramos que esse eixo central é uma realidade presente em cada pessoa e que em todas as pessoas esta realidade tem as mesmas qualidades, então não precisamos nos preocupar com o nome do referencial externo que essa pessoa adota. Nossa preocupação está em colaborar para que o praticante consiga ver neste referencial as mesmas qualidades que ele irá buscar dentro de si mesmo.
Esse é o aspecto espiritual do Yoga. Se o indivíduo tem um referencial espiritual externo, ótimo. Se não tem, não há problema algum, pois outros meios são descritos para nos conduzir etapa por etapa a essa descoberta interior. Etapa por etapa.
Yogasūtra 1.23 “īśvara-praṇidhānāt-vā”
“Um dos caminhos para yoga é a entrega a Deus.”
Yogasūtra 1.24 “kleśa-karma-vipāka-āśayaiḥ-aparāmṛṣṭaḥ puruṣa-viśeṣa īśvaraḥ”
“Deus é aquele que não é afetado pelo ciclo de ações estabelecidas em engano e medo.”
Yogasūtra 1.26 “sa eṣa pūrveṣām-api guruḥ kālena-anavacchedāt”
“Ele é a fonte ilimitada de toda a sabedoria.”
Observação final:
Eu tenho certeza que muitos de vocês aqui também já tiveram a oportunidade de escutar de seus pacientes a mesma coisa que já escutei de alguns alunos: “eu não consigo mais rezar sem sentir isso como algo falso”. Eu acho que essa frase que muitos de nós já escutamos no início de um tratamento resume bem o que foi tratado aqui e também nos dá um bom material para reflexão.
Obrigado
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