Yoga é uma experiência individual. É dito que é uma experiência que nasce de nossa conexão com o que há de mais íntimo, mais interno. Sendo assim, é um caminho solitário. É solitário como a morte, após um certo ponto ninguém poderá cruzar conosco. Talvez por essa razão o yoga tenha sido, por muito tempo, erroneamente visto como um processo que exige isolamento do mundo. Porém, isolar-se do mundo é muito fácil. Isolar-se do mundo é uma ação externa, e ações externas nunca serão alicerces a quem busca yoga. O isolamento de que trata o yoga é muito mais essencial do que isso, é isolar-se da crença de que há um porto seguro a ser encontrado lá fora. Ao longo de nossa vida os “portos seguros” normalmente vão apenas mudando de lugar, difícil mesmo é matá-los. Mas, reconhecendo nossa fragilidade e ignorância básica, devemos considerar que trocar “portos” externos por “portos” mais internos já é um ótimo sinal de crescimento. Isso ocorre não apenas em níveis mais abstratos ao longo da vida, mas em aspectos bastante tangíveis também. Quando nascemos precisamos de alguém “lá fora” para nos dar alimento, para trocar nossas fraldas, para nos proteger do frio e do calor, ou seja, somos dependentes do outro. Sem o outro, morremos. Às vezes exercito minha imaginação pensando na angústia que deve acompanhar uma criança que é abandonada, ainda sem condições de conseguir alimento. É um exercício doloroso. Durante alguns anos precisamos do outro, pois é ele que nos garante a sobrevivência. Vamos crescendo e desenvolvendo habilidades, aprendemos a caminhar e assim passamos a não mais depender do outro para ir de um lugar ao outro, aprendemos a pegar a comida, a colocar a roupa, a tomar banho. Um dia, descobrimos que não só sabemos colocar a roupa, mas também escolher qual colocar, descobrimos que não só sabemos levar o alimento à boca, mas sabemos escolher qual alimento. Independência, essa é a direção do ser humano. E essa direção tem algo de sagrado, algo de profundo, libertador e…solitário.
Ao iniciarmos nossa busca de yoga daremos, provavelmente, os mesmos passos. É o que se espera. Começaremos desejando um “porto seguro”, algo lá fora que me garanta tranqüilidade, força ou paz. Surge aí o primeiro possível obstáculo, acreditamos que alguma outra pessoa será mais importante do que eu mesma. Ouvi muitas vezes, de várias fontes, a afirmação de que o amadurecimento depende do aluno e não do professor. E muitas e muitas vezes respondi para mim mesmo que isso era óbvio. Após alguns bons anos comecei a entender que isso não era nada óbvio e que eu mesmo não acreditava nisso. Eu ouvia, achava que entendia, mas, de fato, não acreditava. Eis a irônica dicotomia: após dezenas de professores martelando nessa afirmação entendi que o professor e seu martelo não eram tão importantes. O yoga não será encontrado no professor ou no método, mas no aluno. Pois é o aluno que deseja yoga, aos outros cabe apenas auxiliar e direcionar. O yoga só será identificado em nós, pois somos nós que o experienciaremos. Assim como apenas nós mesmos identificamos nossa ignorância, nossas falhas, nossos medos, somos nós que identificamos nossa paz e nossa sabedoria. Precisamos encontrar nossas próprias armadilhas e ninguém mais poderá localizá-las por nós. Há inúmeras histórias de brilhantes alunos, não apenas em yoga, que receberam a confiança e o ensinamento de grandes professores e que acabaram por aproveitar o “conhecimento” recebido para causar danos a outros. Essa realidade nos aponta o precioso ensinamento de que o aluno é que faz a escolha, jamais haverá uma garantia externa. Podemos nos amargurar, nos debater e dar justificativas, ao invés de aproveitar para ouvir a confirmação do ensinamento. Podemos, inclusive, quando vivenciamos casos de abuso de poder e manipulação, como recentemente aconteceu com um de meus professores, continuar concluindo que o engano está “lá fora”, na pessoa do professor que seguiu o caminho errado. Mas não, o engano é meu, sempre que minha escolha é seguir o caminho da manipulação, do medo, do apego. E assim é para cada um de nós. Quando pararmos de brigar com as falsas frustrações e entendermos que elas apenas nos esclarecem ainda mais onde está o yoga, quando percebermos que não podemos descobrir se há yoga no outro, mas apenas podemos perseguir yoga em nós mesmos, estaremos mais próximos de uma caminho verdadeiro. Eu preciso olhar para dentro, mesmo na presença do mais “perfeito” professor. Eu preciso olhar para dentro, mesmo na presença do mais “ignorante” professor. Mantendo esse olhar, ao continuarmos nossos caminhos, não perderemos a nós mesmos e descobriremos as nossas verdades. Algumas verdades podem até vir na forma de ensinamentos externos (que vem de outra pessoa ou de alguma situação), mas ela só nos transforma após o nosso próprio processo de digestão e assimilação. O “porto seguro” não está lá fora, ele é justamente aquilo que há de mais íntimo, mais interno.
A reflexão que eu trouxe acima é, também, a base para um questionamento mais amplo sobre as linhagens de yoga e de outras tradições orais. Tradição oral significa um aprendizado que ocorre numa relação viva entre professor e aluno, já as linhagens são a continuidade ininterrupta dessas tradições específicas ao longo de muitos séculos. Essa “linha” contínua de professores-alunos-professores será a responsável para que esses ensinamentos permaneçam vivos e trazendo benefícios a muita gente em todas as épocas. A manutenção desses ensinamentos, se corretamente realizada, permitirá que a semente do conhecimento esteja disponível para gerações futuras, permitindo até mesmo que alunos futuros superem a clareza de seus professores. Mas como isso ocorre? Como pode o ensinamento ficar intacto mesmo em meio a todas as imperfeições humanas, ou seja, aos inevitáveis enganos dos professores e alunos? Como diferenciar o professor do ensinamento? Só poderemos diferenciar se soubermos realmente quem é o professor e quem é o ensinamento, ou seja, se tivermos uma linhagem mais sólida (com vários professores). Uma tradição frágil é aquela que depende de apenas um aluno em sua sucessão, ou seja, não há mais outra pessoa que tenha tido acesso aos ensinamentos. Krishnamacharya dizia que um professor deveria passar todo o seu conhecimento a “pelo menos” um aluno. Quanto mais o ensinamento ficar nas mãos de um único sucessor, mais riscos estarão presentes, pois dependeremos completamente da saúde física e mental dele. Uma das tradições orais que mais me impressiona, nos tempos atuais, em sabedoria, é a tradição budista tibetana. Apesar de eu ser um praticante e professor de yoga, não vejo nenhuma tradição de yoga com uma solidez que se aproxime do budismo. E, mesmo em meio à tradição budista, também veremos inúmeros casos de corrupção e assédio. Também veremos isso no Cristianismo e nos outros ismos, não faltarão exemplos. Os fatos nos apontam incansavelmente ao ensinamento: os erros humanos estarão lá, por mais que consideremos um ambiente “sagrado” ele acabará por nos apontar também o “humano”. E, graças àqueles que se dedicaram a algo maior do que seus próprios umbigos, o conhecimento continuará preservado.
Apesar da presença constante de apegos e de ignorância humana, não serão a ignorância e o apego que embasarão uma linhagem. Os enganos humanos podem até mesmo esconder temporariamente os ensinamentos, mas se houverem pessoas se dedicando à solidez das grandes tradições de conhecimento, eles estarão sempre disponíveis. A morte e a doença sempre existirão e levarão professores sábios, a ignorância sempre existirá e destruirá professores inaptos. Que possamos ouvir esses ensinamentos e manter o foco naquilo que trará benefícios mais permanentes a todos que buscarem o yoga no presente e no futuro distante.
Toca o coração e estimula a mente o que dentro das minhas limitação compreendo como distinção entre a tradição do Yoga e o arcabouço humano necessário a sua propagação, difusão e perpetuação. Nesse ponto identifico no artigo e percebo no geral uma similaridade ou algo comum entre as filosofias que nos convida ao desenvolvimento humano. O que me parece ser um desafio inerente as imperfeições humanas como fronteira ao que de fato é transcendente.