Cheguei a meu consultório no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, para o primeiro atendimento da manhã de uma segunda-feira. Consultório, sala de yoga, a dúvida sempre fica. Quando chamo de sala de yoga, é comum acharem que dou aulas de exercícios para relaxamento. Consultório parece designar melhor o espaço físico onde trabalho com a psicologia do yoga. A primeira pessoa daquele dia era uma paciente que, há alguns anos, mantém atendimentos semanais regulares. Curiosamente, essa mesma paciente, certa vez, ouviu de uma amiga “conheci teu professor de yoga”. A resposta dela, prontamente, foi “ele não é meu professor, é meu terapeuta”. Mas o fato principal que quero relatar aqui é que, nessa manhã, ela veio trazendo flores… lírios da paz.
Nossa conversa começou pelos lírios. Eles estavam ali representando gratidão. Recebi com alegria o delicado gesto, pois gratidão é uma das emoções superiores, sua presença é digna de comemoração. Conversamos sobre o que a havia motivado a expressar esse sentimento, agradeci e manifestei minha felicidade por ela. E, após a segunda-feira, vem a terça, a quarta, a quinta…e passei todos os dias daquela semana sem carro. Normalmente, é minha esposa que fica com ele, pois a escola de nossos filhos é na mesma região da cidade em que ela leciona. E, assim, devido à dificuldade de levar o vaso de flores para casa, o lírio permaneceu durante o fim-de-semana em meu consultório.
Chego, na segunda-feira seguinte, então, em meu consultório novamente. Ao entrar na sala vejo o lírio desfalecido. Flor suave e delicada. Coloquei água e pensei “eu deveria escondê-lo, é vergonhoso ter deixado ele ficar em tal estado”. Mas a sala pequena e sem esconderijos me salvou de uma mentira. Ansiedade minha acreditar que a gratidão possa ser enfraquecida por um pequeno descuido. A paciente compreendeu. Acalmei a mim mesmo fazendo de conta que acalmava a ela, falei que conhecia o lírio, que sabia de sua capacidade de se restabelecer rapidamente. Expliquei, também, minha dificuldade em levá-lo para casa na semana anterior. Como eu havia molhado suas raízes logo no início da manhã, ao meio-dia ele estava cheio de vitalidade novamente. Fotografei-o e enviei a foto a ela para me sentir melhor e compartilhar a total recuperação. Na mesma semana, finalmente, levei-o para casa para mantê-lo mais próximo de meus cuidados.
Esse fato, realmente, ocorreu. E é, também, muito rico enquanto metáfora para apresentar o conteúdo desse texto. Mas o que pretendo representar com cada um dos elementos dessa história? Quem sou eu? Quem é a paciente? O que é o lírio da paz?
Eu represento cada ser vivo, a paciente representa Deus e o lírio da paz representa o corpo que recebemos.
Recebemos um corpo de presente. Não temos a mínima competência para criar, com nossas próprias habilidades, um coração, rins, artérias e tantas outras partes que nos tornam seres vivos. Quando recebemos algo de presente de uma pessoa especial, demonstramos nossa apreciação e fazemos questão de mostrar que cuidaremos bem do que nos foi oferecido. Uma visão superficial poderia considerar que, uma vez recebido o presente, não cabe a ninguém mais julgar a forma como o utilizo. Porém, aquele que dá e aquele que recebe se unem na esfera emocional. O objeto mudou de mãos, mas a gentileza do ato os mantém vinculados. Pois assim é nossa relação com Deus, com a natureza ou com o nome que preferirmos dar à fonte de toda a criação. Estamos profundamente vinculados à fonte. E quanto mais esse vínculo for consciente e for reverenciado, mais nutridos estaremos.
E qual o primeiro passo de reverência apresentado pelo yoga? O primeiro passo de reverência é o cuidado para com o próprio corpo. É ele nosso veículo, nosso veículo do caminho de autoconhecimento. Resgatar o reconhecimento de que o corpo não é um mero campo de desfrutes, prazeres e abusos é uma etapa importante de amadurecimento emocional para todo ser humano. Alguns descobrem tarde demais. Então, será bem vindo qualquer movimento na direção da conscientização desse corpo que foi recebido de forma tão especial. E o que é esse movimento de conscientização? Tornar algo consciente é tornar-se sensível dele e é conhecer o seu papel, o propósito de sua existência. Na psicologia do yoga diríamos “descobrir seu dharma”¹. E qual é o propósito do corpo, o dharma do corpo? Auxiliar a cada um de nós a tornar a vida uma história de descobertas, a caminhar por todos os espaços alimentando-nos de percepções sensoriais de forma a nos gerar reflexões, dúvidas e revelações. O corpo é quem leva nossa mente para passear. Através dele, e do que chamamos “os nove portões”², percebemos o mundo e interagimos com ele oferecendo à mente tudo o que ela precisa para se ocupar e cumprir, a partir daí, o seu papel. Um corpo que não funciona bem é um corpo que não entrega à mente tudo o que ela precisa, é um corpo que filtra mal as informações colhidas do mundo através dos sentidos. É por essa razão que os mestres tradicionais de yoga falam sobre o cuidado alimentar, sobre o descanso, sobre uma rotina saudável e sobre uma forma muito especial de exercício físico. Esses aspectos são apenas a base de todo um conhecimento psicológico e espiritual que também será apresentado. Mas formam um alicerce que não pode ser desprezado.
Nosso sistema corpo-mente é formado de três qualidades básicas chamadas sattva, rajas e tamas. Sattva é a qualidade de leveza e luminosidade, rajas é a qualidade de movimento e excitação, tamas é a qualidade de escuridão e peso. Os cuidados com o corpo afetam positivamente a adequada distribuição dessas qualidades em nosso sistema. Cada uma delas tem a sua hora para cumprir um papel importante. Precisamos da experiência de escuridão e peso para dormir; precisamos de leveza e luminosidade para refletir e tomar decisões; precisamos de movimento e excitação para reagir rapidamente a uma situação emergencial. Mas, para que um exercício físico contribua com a organização de todo esse sistema, não basta trabalharmos a força e a flexibilidade, é necessário utilizarmos métodos que assegurem o correto uso da respiração e da sensibilidade mental. Se estou muito ansioso, por exemplo, facilmente exijo demais de meu corpo de forma a tentar descarregar a agitação, e, muitas vezes, essa atitude inconsciente pode acabar por me deixar sem ar ou com uma contratura muscular. Além disso, seguindo esse padrão de relacionamento com o corpo, estou fortalecendo uma tendência mental abusiva. Não podemos apenas fazer uma medição física para ver os resultados mais evidentes do exercício, também precisamos refletir sobre como a forma como ele é feito afeta o treinamento da mente. Exercitar o corpo é se relacionar com o corpo, e isso exige que saibamos como treinar atitudes mentais saudáveis simultaneamente.
É por esse motivo que a prática de entrada do yoga oferece meios para exercitarmos o corpo, ao mesmo tempo em que tornamos a respiração mais lenta e direcionamos mais a atenção sustentando certas atitudes especiais na relação com o corpo e com a respiração. Corpo, respiração e mente não podem ser desgrudados. Somos um. Não somos partes isoladas. Quanto mais entendermos a inviolabilidade dessa conexão, mais nos convenceremos da importância de integrar todos esses aspectos no exercício físico.
Reverenciar a perfeição desse corpo é agradecer a Deus. Cuidar deste corpo como quem protege um presente especial é um gesto de humildade e sabedoria. Somos limitados, caímos em excessos, falhamos, temos dificuldade de manter hábitos saudáveis… mas qualquer conquista na direção dessa construção gradual amparada pelo sentimento de gratidão será de grande benefício a nós mesmos e reverberará positivamente naqueles que nos cercam. Um relacionamento atento e sensível, com esse que é nosso instrumento mais perceptível, aumenta em muito nossas chances de avançar em direção a um caminho mais profundo de autoconhecimento e realização.
Notas
1 – dharma é a natureza de algo, o que ele tem a cumprir como propósito. Significa, também, dever ou ação adequada.
2 – os nove orifícios do corpo vinculados à ação e à percepção: ânus, sexo, boca, narinas, olhos e orelhas. O corpo é conhecido como “a cidade dos nove portões”.
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